Renato Russo repetiu diversas vezes que não era poeta e talvez ele estivesse se referindo a questão técnica. Quem estudou literatura, sabe muito bem que a poesia possui peculiaridades não muito simples e a sua riqueza não se propõe apenas na temática, mas na forma, no jeito, na estética. Mesmo assim, o compositor carioca, famoso em todo o Brasil, por conta da sua carreira vitoriosa com sua banda Legião Urbana, fez história por conta das suas histórias, seu talento musical e por sua verve afiada e tantas vezes, sofisticadamente irônica.
Olhando o mundo neste início apocalíptico de 2010, não pude deixar de linkar um dos melhores textos de Renato - Perfeição - com tudo que vem ocorrendo no mundo, sem maiores cerimônias. As contradições e aflições que incomodam homens e mulheres, as perspectivas tão antagônicas e as realidades diversas em um só planeta. A vida expira em alguns cantos, a morte respira em tantos outros.
O meio cristão embora tenha como pilar da sua filosofia existencial a verdade [João 14:6], por vezes prefere o discurso bélico como principal mote de sua própria função de vida. É como se a guerra não tivesse fim e a gente não tivesse outro motivo para viver se não para guerrear e vencer. Apenas as nossas próprias batalhas.
... dentro dos templos, nos seminários, nos congressos, as grandes crises que afligem o mundo parecem ter perdido a real dimensão de tangência. Certa feita Jesus não quis despedir a multidão por conta do horário e da fome que assolava seus acompanhantes e sempre que este texto é explanado, parece que o milagre fica maior que o fato: a fome dos que estavam ali. Olhar de Cristo para necessidade e carência social do ser andava de mãos dadas com a sede do espírito e a inanição da alma.
E o que isso tem a ver com a grande canção Perfeição?
Nossa total falta de habilidade de misturarmos nosso papel como gente e como crente. Nossa inversão de valores e nossa possível falha de atendimento ao público em todas os seus desejos. Nossa música é egocarente e tratamos o Criador como povo escolhido, predestinado. Mesmo que a retórica seja abrangente.
Renato Russo denuncia em Perfeição a hipocrisia de quem consegue comemorar a tolice mesmo mediante o fracasso de tantos, as doenças e as calamidades. Não é uma postura de arrogância e falsa sensibilidade, pelo contrário, é uma leitura sensível do estado do mundo, suas idiossincrasias e sandices e a opressão de quem vê o buraco chegando e ninguém pra salvar.
Pelos discípulos a intenção era "dispensar a multidão" e continuar com o Mestre. "O Mestre é nosso". Um motivo religioso escondia a vaidade proselitista daqueles homens que em nada, eu disse NADA diferem, dos que adotaram a religião e negaram o próximo. Abraçar o logos e esquecer o homo é o mesmo que negar todo o sacrifrício da Cruz, por conta de um lugarzinho no céu.
A arte para mim é a válvula de escape que o homem ainda não fechou. É o sopro de Deus dizendo para gente, em manifestações humanas, o que com os olhos da carne, ainda não pudemos enxergar e desta vez, o profeta foi Renato.
Perfeição - Renato Russo (Legião Urbana)
Vamos celebrar
A estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja
De assassinos
Covardes, estupradores
E ladrões...
Vamos celebrar
A estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso estado que não é nação...
Celebrar a juventude sem escolas
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião...
Vamos celebrar Eros e Thanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade...
Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta
De hospitais...
Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras
E seqüestros...
Nosso castelo
De cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda a hipocrisia
E toda a afetação
Todo roubo e toda indiferença
Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã...
Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar o coração...
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado
De absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo o que é normal
Vamos cantar juntos
O hino nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
Comemorar a nossa solidão...
Vamos festejar a inveja
A intolerância
A incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente
A vida inteira
E agora não tem mais
Direito a nada...
Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta
De bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isto
Com festa, velório e caixão
Tá tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou
Essa canção...
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão
Venha! O amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça
Venha! Que o que vem é Perfeição!...